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domingo, julho 23, 2006

O reflexo do Homem

Por Kiko Moreira
O Homem acordou com uma sensação de vazio no peito, olhou em volta e tudo parecia estar em seu devido lugar, a janela aberta, deixava entrar um vento frio e confortante; não fosse o seu costume de sempre levantar-se às cinco da manhã, com certeza ficaria até bem mais tarde em seu leito; já não tinha a necessidade de acordar tão cedo, estava agora aposentado e nada tinha de urgente para fazer, a não ser cultivar o velho hábito e sair da cama o mais rápido possível. Levantou-se com uma falta de disposição que não lhe era comum, algo havia de errado e agora tinha certeza disso. Espreguiçou-se indolente e procurou os chinelos embaixo da cama, foi até a janela e respirou fundo o ar fresco daquela manhã. Depois de olhar em volta foi até o banheiro e, ainda sonolento, abriu o armário pegando seu barbeador favorito. Lembrou-se de Juliana, ela o havia dado a ele – Era uma pena que não houvesse progredido o relacionamento dos dois; ela era muito livre, muito espontânea e cheia de sonhos – o Homem era cheio de métodos, disciplinado e prisioneiro do trabalho - Resolveu não pensar mais no assunto e pôs-se a encher o rosto de creme para iniciar o ritual matutino de barbear-se. Tomou um susto, não acreditando no que seus olhos viam, ou melhor, no que eles não viam...

Seu reflexo simplesmente havia desaparecido; não restava o menor traço de seu corpo no espelho, seu nariz comprido, os olhos puxados e de cor indefinida, seus cabelos grisalhos ou a barba ainda por fazer; tudo sumido. Recostou-se na parede suando frio, esfregou os olhos e percebeu que não estava sonhando. "Virei um vampiro"; foi a primeira bobagem que pensou, para depois dizer aborrecido - Vampiros não acordam de dia - Lembrava-se bem de ter visto seu reflexo ontem ao voltar da caminhada, forçou a memória tentando lembrar exatamente o local e não conseguiu. Ele saíra para caminhar um pouco, relaxar e esticar os ossos, afinal ele merecia isso após tantos anos dedicados exclusivamente ao trabalho, ganhando pouco pelo tanto que fazia, mas o fazia com amor e cheio de alegria, afinal era a única coisa que o deixava feliz depois que Juliana foi embora. Sentia-se doente só de pensar em chegar atrasado e olhe que somente uma vez, por causa de uma greve de ônibus, bateu o ponto depois do horário; lembrava-se bem do dia, a repartição ficara vazia, mesmo o chefe só apareceu depois do meio-dia; depois disso o Homem comprara uma bicicleta, assim era só acordar uma hora mais cedo e ir pedalando até o trabalho quando houvesse outra greve dos motoristas. Ele não merecia aquilo que estava acontecendo, tinha certeza, não estava louco ou sonhando e decidiu fazer o que lhe parecia mais lógico: fazer o percurso inverso da caminhada do dia anterior para tentar descobrir onde vira seu reflexo pela última vez. Passava pelas ruas, envergonhado – O que diriam as pessoas se notassem o seu estado – Somente quando saiu do prédio, notou que sua sombra também o abandonara, tinha lógica, a sombra nada mais é do que um reflexo em negativo proporcionado pela interposição de um corpo opaco diante da luz. Andou por todo caminho atento a todo movimento indicativo de que seu "outro eu" estivesse por perto, passou pela praça onde nos dias de folga ia levar migalhas de pão para os pombos, seus únicos amigos nessa vida quase reclusa em que vivia. Nunca havia casado! Depois do fiasco com Juliana, não conseguiu aproximar-se mais de outra mulher. Vagou pelas ruas o dia inteiro e só à tarde quando, desanimado e sem esperanças, voltava para casa notou a intensa vitrine a sua frente e lembrara-se de ter sua atenção desviada para lá na noite anterior – Ali! Foi onde vi meu reflexo ontem – espantou-se o Homem. Sim ele ficara impressionado com os produtos em exposição e com a promessa de coisas ainda mais interessantes no interior da loja e se detivera alguns minutos buscando elucidar os mistérios de tão exótica casa comercial e enquanto perscrutava o interior da loja, deparou-se com o próprio rosto em um espelho colocado logo após a vitrine. Lembrou de ver um sorriso de canto, desconhecido, quase cafajeste que nada lembrava o seu sorriso formal; depois disso estava em casa preparando-se para dormir... Resolveu entrar e tentar elucidar de vez aquele mistério.

O Homem entrou na Sex-Shop com um pouco de desconfiança, era a primeira vez que ia a um local como aquele, não sabia ao certo como se comportar ou mesmo o que pedir, mas estava achando tudo aquilo muito excitante e divertido. Uma linda morena veio atendê-lo, possuía uma voz manhosa com jeito de gata no cio; vestia um lindo vestido branco com uma transparência que deixava entrever seus seios pequenos e pontudos, uma pequena tatuagem de uma flor de lis sobressaía de seu decote rasgado, uma deusa que todo homem gostaria de ter por uma noite ao menos. Perguntou se podia ajudá-lo e com um sorriso mostrou-lhe as estantes onde se empilhavam ordenadamente os mais variados objetos, capazes de arrancar do âmago de uma pessoa as suas mais veladas fantasias e fazê-las explodir num delírio de puro êxtase. Num repente de ousadia o Homem pediu para ver a relação de moças da casa, que estava exposta em uma das prateleiras; a morena com um olhar sapeca e cheio de malícia, trouxe-lhe a lista, uma seleção das mais belas representantes da espécie. Já não lembrava mais como aquela louca aventura havia começado, queria apenas descobrir que prazeres o esperavam atrás da cortina cor de rosa que dava acesso ao reservado da loja; Pediu a companhia de uma loira de nariz arrebitado, de coxas grossas e dentes perfeitos e de uma nissei de pele alva e cabelos negros como uma noite sem lua.

O quarto era bem decorado, num estilo que lembrava muito os cômodos de uma casa de fazenda, uma colcha de retalhos bem harmonizados decorava a enorme cama de madeira nobre, no ar havia um perfume de coisa selvagem e livre, uma força da natureza. O Homem, investido de um vigor até então desconhecido e ao mesmo tempo tão familiar notou o olhar de disfarçada decepção das meninas, não tinha importância, ao final daquela hora a insatisfação iria transformar-se em louco desejo; o mais antigo ritual do mundo iria mais uma vez tornar-se sagrado e profano, religião e heresia.

Puxou para si a loira, que nunca havia experimentado um beijo tão ardente, uma onda de calor subiu por entre suas pernas quando o Homem tocou delicadamente seus seios por cima da blusa, puxando a alça para os lados e fazendo-os aparecerem rosados e rijos como os de uma menina em plena puberdade; a nissei sentido uma explosão de prazer invadir o quarto, abraçou o Homem em busca de seus lábios, seus pêlos eriçados a tornavam ainda mais selvagem e pueril. A loira foi conquistada num vai e vem malicioso e quente, seus gritos foram ouvidos muito ao longe, a nissei jorrou seu prazer só com os dedos do Homem; seus lábios subiam por entre as coxas das duas mulheres e parecia queimar em brasa cada pequeno pedaço de pele, arrancando urros e suspiros de volúpia imensurável; o Homem não sabia que possuía tanta energia aprisionada e sentiu-se triste por tudo o que já perdera, lembrou-se de Juliana; mas ao mesmo tempo sabia que ainda era possível viver e viver intensamente. Foram horas desse amor louco e insaciável, as meninas pediam mais prazer e Ele lhes dava tudo o que queriam, era como se a deusa do amor houvesse transformado aquele quarto em um templo e espalhasse seu cheiro de fêmea desde a criação; o Homem estava feliz, seu ciclo havia se iniciado e a sua semente ficaria plantada, tudo agora fazia sentido para Ele, era o momento da mudança definitiva, Ele havia vivido para aquele momento. Beijou cada uma das meninas nos lábios e despediu-se delas e Ele soube o quanto era amado, pois só o deixaram sair após prometer voltar logo, sorriu um riso bondoso e honesto e saiu do quarto; a recepcionista o desejou no olhar e perguntou quando seria a vez dela – Breve – respondeu e ajeitando os cabelos no espelho, sorriu novamente o seu sorriso cafajeste: o seu reflexo voltara e Ele sabia, não iria mais abandoná-lo. Piscou os olhos para a morena e saiu assoviando uma canção....

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