Em artigo ao Globo, Wagner Moura diz que 'Tropa de elite' não é fascista
Publicada em 25/09/2007 às 08h35m
Wagner Moura
Escrevo instigado pelo bom texto do Arnaldo Bloch (leia o artigo na íntegra aqui) sobre a sessão de estréia de "Tropa de elite" . E respondo categórico à sua pergunta: Não, "Tropa de elite" não é fascista. Não é possível que alguém que tenha visto "Ônibus 174", um dos filmes mais humanistas dos últimos tempos, possa achar que o Zé Padilha (o diretor) tenha feito um filme fascista. Mas também fico preocupado quando vejo o capitão Nascimento ser tratado como herói. Fico pensando como reagiria ao filme uma platéia sueca. Não creio que pensariam naqueles policiais torturadores como heróis, assim como muita gente que vê o filme aqui também não pensa. Talvez os suecos não precisem de heróis. Talvez, aí sim uma tragédia, fascistas estejamos nos tornando nós, brasileiros, cidadãos carentes de uma política de segurança pública qualquer, que vemos naqueles policiais honestos, bem treinados, mas desrespeitadores dos direitos humanos mais elementares, a solução para o caos em que estamos metidos. Compartilhei contigo, Arnaldo, a vontade de vomitar o pastel de cordeiro no Odeon. Mas, na minha opinião, "Tropa de elite" contribui com o mais importante em épocas de crise: o debate (inimigo do fascismo). O filme traz um ponto de vista fundamental para se entender e discutir segurança pública, o olhar do policial. Eu, particularmente, discordo do capitão Nascimento em quase tudo, mas não posso deixar de ver a importância de entender seu pensamento como fundamental para o debate sobre violência no Brasil, já que é ele, assim como os traficantes e os moradores de favela, quem vive diretamente essa guerra particular, como nos ensinou, não por acaso, o capitão Rodrigo Pimentel, roteirista do "Tropa de elite", no seminal "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles.
Acho que o "Tropa", além dos méritos artísticos que tem, talvez já seja o filme pós-retomada que mais suscitou debates, a começar pela questão da pirataria, exaustivamente discutida. E não vejo, no Brasil de hoje, debate mais importante do que violência e segurança pública. Segurança pública não tem mais a ver só com a tragédia das vidas que se vão por conta da guerra polícia-tráfico-com-moradores-no-meio. Tem a ver, por exemplo, com aumento de verbas para a Previdência e para a Saúde. E, quando falo de violência urbana, quero lembrar que se para nós, moradores da Zona Sul, maioria na sessão do Odeon, a chapa já tá quente há muito tempo, imaginem para quem não pode sair de sua casa por ordem de um traficante, quem tem que passar a noite no chão com medo de bala perdida, quem é esculachado e desrespeitado pela polícia, quem não pode falar com o parente da comunidade vizinha por ordem do poder oficial, ocupante do vácuo deixado pelo poder instituído que, por sua vez, vem historicamente negligenciando essas pessoas. Isso é um fato: as maiores vítimas da violência urbana no Brasil são os moradores das favelas, e o filme mostra isso. Estou convicto: não há armas mais poderosas de combate à violência do que educação, cultura, lazer, esporte, bem-estar social e geração de emprego. É assim que o capitão Storani, oficial do Bope reformado que nos auxiliou no treinamento para o filme, tem tentado combater a violência em sua gestão como secretário de Segurança num município da Baixada. E, mais uma vez, recorro ao capitão Pimentel, na maravilhosa entrevista a João Moreira: "Enquanto o único braço do poder público que sobe a favela for a polícia, não haverá solução."
Pimentel foi também o primeiro policial que eu vi defender a legalização do consumo de drogas, que o Arnaldo reclamou não constar nos debates do núcleo PUC do filme, onde o Zé Padilha estudou. E acho que já passou da hora mesmo de discutir esse assunto com honestidade. Capitão Nascimento põe sua vida em risco todos os dias para lutar uma guerra inútil contra o tráfico e responsabiliza os consumidores pela sua tragédia pessoal. Essa tem sido inclusive uma bandeira defendida por órgãos oficiais de combate às drogas. É lógico que há uma responsabilidade individual nisso, e eu conheço muita gente que deixou de fumar maconha para não alimentar o tráfico. Mas não creio que essa campanha seja mais eficaz do que a legalização do consumo. O uso de drogas existe desde que o mundo é mundo e não vai ser a repressão que vai acabar com o consumo. Mas a legalização pode acabar com o tráfico. Eu vejo o consumidor como o elo mais fraco da cadeia. Combatê-lo é contraproducente. O abuso e o vício devem ser tratados como problemas de saúde pública. O tráfico é que é questão de segurança pública. É o tráfico que arrasta os jovens de periferia para a morte e tenho certeza de que morre muito mais gente na guerra do tráfico do que de overdose. De que forma fazer, eu não sei, mas acho que já passou mesmo da hora de discutir o que me parece óbvio e acredito que o filme contribui com isso. Só mais um dado: sabe de quem partiu a idéia de legalizar as drogas na Holanda? Da polícia, parceiro.
Wagner Moura é ator e protagonista do filme "Tropa de elite"
Publicada em 25/09/2007 às 08h35m
Wagner Moura
Escrevo instigado pelo bom texto do Arnaldo Bloch (leia o artigo na íntegra aqui) sobre a sessão de estréia de "Tropa de elite" . E respondo categórico à sua pergunta: Não, "Tropa de elite" não é fascista. Não é possível que alguém que tenha visto "Ônibus 174", um dos filmes mais humanistas dos últimos tempos, possa achar que o Zé Padilha (o diretor) tenha feito um filme fascista. Mas também fico preocupado quando vejo o capitão Nascimento ser tratado como herói. Fico pensando como reagiria ao filme uma platéia sueca. Não creio que pensariam naqueles policiais torturadores como heróis, assim como muita gente que vê o filme aqui também não pensa. Talvez os suecos não precisem de heróis. Talvez, aí sim uma tragédia, fascistas estejamos nos tornando nós, brasileiros, cidadãos carentes de uma política de segurança pública qualquer, que vemos naqueles policiais honestos, bem treinados, mas desrespeitadores dos direitos humanos mais elementares, a solução para o caos em que estamos metidos. Compartilhei contigo, Arnaldo, a vontade de vomitar o pastel de cordeiro no Odeon. Mas, na minha opinião, "Tropa de elite" contribui com o mais importante em épocas de crise: o debate (inimigo do fascismo). O filme traz um ponto de vista fundamental para se entender e discutir segurança pública, o olhar do policial. Eu, particularmente, discordo do capitão Nascimento em quase tudo, mas não posso deixar de ver a importância de entender seu pensamento como fundamental para o debate sobre violência no Brasil, já que é ele, assim como os traficantes e os moradores de favela, quem vive diretamente essa guerra particular, como nos ensinou, não por acaso, o capitão Rodrigo Pimentel, roteirista do "Tropa de elite", no seminal "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles.
Acho que o "Tropa", além dos méritos artísticos que tem, talvez já seja o filme pós-retomada que mais suscitou debates, a começar pela questão da pirataria, exaustivamente discutida. E não vejo, no Brasil de hoje, debate mais importante do que violência e segurança pública. Segurança pública não tem mais a ver só com a tragédia das vidas que se vão por conta da guerra polícia-tráfico-com-moradores-no-meio. Tem a ver, por exemplo, com aumento de verbas para a Previdência e para a Saúde. E, quando falo de violência urbana, quero lembrar que se para nós, moradores da Zona Sul, maioria na sessão do Odeon, a chapa já tá quente há muito tempo, imaginem para quem não pode sair de sua casa por ordem de um traficante, quem tem que passar a noite no chão com medo de bala perdida, quem é esculachado e desrespeitado pela polícia, quem não pode falar com o parente da comunidade vizinha por ordem do poder oficial, ocupante do vácuo deixado pelo poder instituído que, por sua vez, vem historicamente negligenciando essas pessoas. Isso é um fato: as maiores vítimas da violência urbana no Brasil são os moradores das favelas, e o filme mostra isso. Estou convicto: não há armas mais poderosas de combate à violência do que educação, cultura, lazer, esporte, bem-estar social e geração de emprego. É assim que o capitão Storani, oficial do Bope reformado que nos auxiliou no treinamento para o filme, tem tentado combater a violência em sua gestão como secretário de Segurança num município da Baixada. E, mais uma vez, recorro ao capitão Pimentel, na maravilhosa entrevista a João Moreira: "Enquanto o único braço do poder público que sobe a favela for a polícia, não haverá solução."
Pimentel foi também o primeiro policial que eu vi defender a legalização do consumo de drogas, que o Arnaldo reclamou não constar nos debates do núcleo PUC do filme, onde o Zé Padilha estudou. E acho que já passou da hora mesmo de discutir esse assunto com honestidade. Capitão Nascimento põe sua vida em risco todos os dias para lutar uma guerra inútil contra o tráfico e responsabiliza os consumidores pela sua tragédia pessoal. Essa tem sido inclusive uma bandeira defendida por órgãos oficiais de combate às drogas. É lógico que há uma responsabilidade individual nisso, e eu conheço muita gente que deixou de fumar maconha para não alimentar o tráfico. Mas não creio que essa campanha seja mais eficaz do que a legalização do consumo. O uso de drogas existe desde que o mundo é mundo e não vai ser a repressão que vai acabar com o consumo. Mas a legalização pode acabar com o tráfico. Eu vejo o consumidor como o elo mais fraco da cadeia. Combatê-lo é contraproducente. O abuso e o vício devem ser tratados como problemas de saúde pública. O tráfico é que é questão de segurança pública. É o tráfico que arrasta os jovens de periferia para a morte e tenho certeza de que morre muito mais gente na guerra do tráfico do que de overdose. De que forma fazer, eu não sei, mas acho que já passou mesmo da hora de discutir o que me parece óbvio e acredito que o filme contribui com isso. Só mais um dado: sabe de quem partiu a idéia de legalizar as drogas na Holanda? Da polícia, parceiro.
Wagner Moura é ator e protagonista do filme "Tropa de elite"